Um tema que continuará central no cotidiano dos professores em 2025 será o currículo. Isso porque as mudanças que a BNCC impõe ainda não estão plenamente equacionadas do ponto de vista prático no trabalho em sala de aula. O problema mais grave está no Ensino Médio, mas, no meu entender, ainda temos muito o que rever nos programas dos Anos Finais.
Nesse sentido, voltar no tempo pode contribuir para se entender como a definição do currículo está profundamente associada à concepção do papel da educação e, a despeito de normas e regulamentos, é profundamente determinada pelas práticas efetivas dos professores. O texto de Jacques Verger “Cultura, ensino e sociedade nos séculos XII e XIII” (EDUSC, 2001) esclarece qual era o papel da educação durante os primeiros séculos da Idade Média [Alta Idade Média]. Veja o que ele diz a respeito:
O que se ensinava nestas escolas e como? Os elementos de resposta dados pela Histoire de mes malheurs valem sobretudo para as escolas parisienses e mantidas pelos mestres de formação parisiense. Os programas evocam a priori os das escolas da Alta Idade Média: trivium, quadrivium e Sagrada Escritura. As “autoridades” lidas [ i.e, os textos estudados] continuavam as mesmas e Abelardo [autor da obra mencionada e professor importante do início do século XII] não trouxe, nesse ponto, como já dissemos, nada de novo.
Na prática, porém, fortes inflexões se desenhavam; não somente as ciências do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia, música) ficaram negligenciadas, ao menos em Paris, mas também no interior do trívium a dialética (também chamada então de lógica) era priorizada sobremaneira, absorvendo a retórica e confinando a gramática a uma posição subalterna. Para os mestres parisienses e Aberlado em particular, o ensino se torna antes de tudo ensino das artes das linguagens e dos princípios de raciocínio que dão a chave de todas as outras disciplinas, inclusive da ciência sagrada, que não é mais somente comentário da Escritura (sacra pagina), mas “teologia”. Abelardo foi um dos primeiros a utilizar a palavra em sua acepção moderna de relato discursivo e sistemático do conteúdo da fé.
As classificações do saber
Os autores do século XII herdaram da Antiguidade muitos sistemas de classificação das disciplinas. O mais simples […] era o sistema das setes artes liberais. Apesar de – ou talvez graças a isto – seu caráter elementar e sobretudo descritivo, ele havia atravessado toda a Alta Idade Média [séculos V ao XI] e conservava no século XII uma popularidade que não se acabaria nem mesmo na época universitária. Sabemos que ele se baseava na distribuição das setes artes “liberais” (únicas dignas do homem livre) em duas categorias: as artes da palavra e do signo (gramática, retórica e dialética) no trivium e as artes do número e das coisas (geometria, aritmética, astronomia e música) no quadrivium. O estudo destas sete artes era propedêutico [i.e, preparatório] ao da disciplina suprema, Filosofia para os antigos, Sagrada Escritura para os doutores da Igreja. Este esquema tinha o interesse de distinguir claramente um certo número de disciplinas precisas, mas não corresponde de fato ao conteúdo efetivo dos ensinamentos (em que o quadrivium, teoricamente mais nobre do que o trivium era, na realidade, geralmente reduzido a uma porção mesquinha) (p. 74)
Mas naqueles tempos ocorriam mudanças importantes, com o aumento do número de escolas urbanas, resultado mesmo do lento, mas constante, crescimento das cidades a partir de então. Os mestres de parte dessas escolas, em razão do seu público, que não tinha objetivo de seguir carreira eclesiástica, passaram a promover mudanças curriculares, reduzindo a ênfase no ensino das formalidades da lógica, consideradas por alguns educadores como excessivas e desestimulantes já naquele tempo. Eles começam a formular novas propostas. Hugo de Saint-Vincent escreve uma obra que será influente por muito tempo, chamada Didascalion, na qual formula, segundo Verger, uma introdução pedagógica e epistemológica dos saberes que os estudantes deveriam ter acesso. Hugo não descartava o valor do estudo das linguagens e das “realidades superiores” ou teóricas – que têm por objetivo a busca da verdade –, mas chamava atenção para a necessidade do conhecimento das “realidades inferiores”, dos saberes associados às “artes mecânicas”, que levaria à verdade das coisas.
Hugo distinguia sete artes mecânicas:
“a fabricação da lã (e de todo têxtil ou pele em geral), o armamento (isto é, de fato, a Arquitetura e a metalurgia), a navegação, a agricultura, a caça (e a alimentação em geral), a Medicina, a ciência teatral e os jogos. Muitos admiraram essa ampla abertura de espírito rumo ao campo das técnicas e quiseram ver ali uma “reabilitação” da troca, da produção material e do trabalho manual. Seria ir um pouco longe demais. […] a ausência de qualquer referência à condição social destas atividades mostra que a criação dessa categoria respondia provavelmente a uma certa preocupação de renovação filosófica, mas não a promoção de um verdadeiro saber tecnológico e ainda menos à criação de novos ensinamentos que, salvo para a Medicina, apareceriam muitos séculos mais tarde (p.83).
De todo modo, aquele mestre medieval já indicava um caminho de mudanças. Na mesma obra ele tratou de aspectos práticos sobre como estudar os textos “(dividi-los quantas vezes forem necessárias”), bem como elencou as principais qualidades que os estudantes deveriam cultivar: evitar o excesso em tudo, ser zeloso, humilde e não temer a vida no estrangeiro (exílio). E conclui: é o trabalho e o amor ao saber que levam a obra a seu termo, formulando uma ideia que atravessaria séculos no mundo educacional.